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Controle de Finalidade na lavratura de certidões

4.2.2. Controle de Finalidade na lavratura de certidões

Por sua vez, em relação à lavratura de certidões as implicações da LGPD devem ser examinadas no que se refere, de um lado, ao acesso e de outro, ao conteúdo das certidões.

Sobre o acesso, o primeiro ponto diz respeito à possibilidade de consulta direta dos livros de registro imobiliário, que é admitido por parte da doutrina. Como destaca Guilherme Loureiro a consulta direta não se coaduna à inteligência do art. 16 da LRP e não é aceita pela jurisprudência paulista, que somente admite a publicidade indireta e acesso ao conteúdo e informações registrais por meio de certidões. Assim, se pairava alguma dúvida doutrinária acerca desse ponto, essa é dirimida diante da exigência de necessidade e minimalidade no tratamento de dados pessoais. A leitura deve ser estrita do art. 16 da LRP. Se o acesso ao conteúdo dos dados registrais é comandado pela lei na forma de lavratura de certidões, não pode o oficial franquear o acesso a todo conteúdo dos livros e da matrícula. Muito embora a emissão de certidão de inteiro teor por cópia reprográfica da matrícula elimine diferenças práticas quanto ao conteúdo acessado, veremos a seguir que tal prática merece revisão para que a lavratura de certidões seja compatível com o princípio de necessidade no tratamento de dados pessoais que rege a LGPD.

O segunda questão acerca do acesso é se deve ser contextual o controle da finalidade no âmbito da lavratura de certidões, isto é, se seria necessário exigir do interessado, esclarecimentos sobre o contexto particular e finalidade  pela qual tem interesse na certidão. No regime adotado pela legislação Alemã, por exemplo, toda requisição de certidão deve ser acompanhada de demonstração (prova) de legítimo interesse a ser apreciado pelo oficial de registro. Derivar esse regime do princípio de finalidade da LGPD implicaria conflito com o art. 17 da Lei de Registros Públicos, que, como visto, impõe o dever de emitir a certidão independentemente de motivação.

Trata-se de conflito de difícil resolução em se tratando de uma lei geral posterior diante de uma lei especial anterior. Segundo Bobbio, o critério de resolução lex posterior generalis non derrogat lex speciali deve ser tomado com cautela, com observação do contexto e de uma análise casuística.[1] Também Serpa Lopes, citando De Ruggiero e Ennecerus-Kipp-Wolf, afirma que “a solução deve ser buscada na pesquisa dos objetivos da lei ou da vontade do legislador, sem se ater, como um axioma, aos pressupostos exarados nos brocardos em foco”.[2]  Já Beviláqua defende a solução oposta: “Se entre lei geral posterior e lei especial anterior há contradição direta e manifesta, resolve-se o conflito pela revogação da lei anterior”. [3]

Anna Beerle, ao abordar o regime holandês de registro de propriedade, que, a exemplo do brasileiro, não exige comprovação de interesse para obtenção de certidão, entende que sistemas abertos seriam incompatíveis com a proteção de dados, por implicar tratamento desproporcional.[4] Em sua interpretação, a finalidade do requerimento, comprovado o legítimo interesse, é que firmaria os limites de conteúdo constantes na certidão. Não havendo interesse legítimo, o acesso seria desproporcional.

Entendemos, porém, que o controle de finalidade possa ser exercido independentemente do contexto dado pelo motivo específico da requisição pelo interessado, desde que se faça o teste de necessidade sob leitura restritiva da competência registral, qual seja, naquilo que for estritamente necessário para produção do meio de prova jurídico a que se destina a certidão.[5]Com isso, os oficiais de registro devem cuidar para que as informações refletidas e veiculadas nas certidões atendam ao estritamente necessário para a produção do efeito jurídico específico. Mais do que isso, devem promover revisão, de modo uniforme entre registradores, daquilo que deve ser veiculado no conteúdo de cada tipo de certidão lavrada, de modo a satisfazer o teste de necessidade contido no princípio de finalidade.

Essa consideração é importante, pois deve levar à revisão da prática, hoje corrente, em se fornecer cópia reprográfica do inteiro teor da matrícula pelo oficial de registro de imóveis.  Mas vale verificar se, aqui, há, efetivamente conflito, entre a LRP e a LGPD para então harmonizar sua convivência.

O art. 19, caput, da LRP indica as formas pelas quais a certidão pode ser lavrada, i.e., em inteiro teor, em resumo ou em relatório, ao passo que o parágrafo 1º autoriza o oficial a lavrar a certidão de inteiro teor por cópia reprográfica. E o art. 17 da mesma lei atribui a qualquer cidadão o direito de obter certidão sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. Seria derivável, a partir dessas regras, o direito de qualquer cidadão a requerer a certidão de inteiro teor, correlato ao dever de fornecer o inteiro teor conforme requisitado?

Mas a competência do oficial de registro que fixa a finalidade do seu ato está em conferir segurança e eficácia aos negócios imobiliários (LRP) e a Lei 7.433/85, que trata dos requisitos de lavratura de escrituras públicas, indica que apenas são necessárias as certidões de propriedade e de ônus reais. Não é, portanto, necessário, para o terceiro de boa-fé, ter acesso à relação dos negócios ou fatos jurídicos antecedentes àqueles que determinam a condição atual do imóvel. Na verdade, e aqui a razão para a delegação da função pública registral ser delegada a profissional de direito, é o oficial de registro quem deve, ao analisar a matrícula identificar quais são as inscrições relevantes no momento da solicitação da certidão para que haja segurança no tráfico de imóveis.

Se conferir esta segurança é a função pública da lavratura de certidões, então, por força do princípio de necessidade do art. 6º, inc. III, da LGPD o tratamento dos dados registrais deve ser o mínimo necessário para atender a esta finalidade. Assim, os elementos históricos da matrícula que sejam irrelevantes para garantir a relação jurídica de transmissão do imóvel, não devem constar da certidão a ser lavrada.

Desse modo, se o oficial de registro se restringir à sua função pública, não há conflito entre LRP e LGPD. O conflito estaria presente apenas se, em leitura literal do art. 17, entender-se que a mera requisição de inteiro teor do registro levaria à obrigação de fornecer cópia reprográfica da matrícula, que integra um livro (Livro 2, art. 173 da LRP). Mas essa leitura, que levou a uma prática costumeira de emissão de certidão de inteiro teor da matrícula, por cópia reprográfica, se já era questionável, não pode mais resistir ao reconhecimento, pelo STF, do assento constitucional da autodeterminação informativa, diante da constatação dos riscos que, no estado tecnológico atual, o processamento de dados pessoais pode trazer ao cidadão. Para que se preserve a compatibilidade, deve-se ler a dispensa da motivação ou interesse, do art. 17, como a presunção legal de que o interessado quer ver produzido o efeito próprio do exercício da competência registral. Ou seja, qualquer pessoa, usuária de um serviço universal, tem o direito, sem provar interesse ou trazer motivação, em movimentar o oficial de registro para exercer sua competência. Esse exercício da competência registral não serve aos caprichos do interessado, mas apenas à produção dos efeitos legais. Desse modo, não se pode assumir que o interesse arbitrário do solicitante determinaria a finalidade do processamento dos dados pelo registro. O interesse do solicitante, “qualquer pessoa”, traduz-se no interesse presumido pela ordem jurídica, qual seja, obter a finalidade consistente na função pública exercida pelo registrador. É, portanto, a competência legal registral que determina a finalidade das certidões.

Com isso, tem-se que as certidões deverão conter as informações mínimas necessárias para assegurar eventual negócio sobre o bem do qual foi solicitada a certidão. Aspectos pessoais como a mudança de nome do atual proprietário ou de proprietário anterior certamente não são relevantes para esse fim. Também uma penhora já cancelada, a indisponibilidade de bens, hipoteca já quitada ou usufrutos com extinção averbada, elementos dos quais seria possível realizar inferências sobre situação e aspectos da personalidade do proprietário, são todos irrelevantes para a transmissão imobiliária, não devendo constar da matrícula. Há porém uma série de situações mais complexas que merecem análise e padronização de procedimentos, como cancelamentos indiretos de penhora decorrente de arrematação, imóvel adquirido na constância de casamento pelo regime de separação obrigatória, ou quaisquer aspectos que, pelo entendimento vigente da jurisprudência de direito civil, possam instabilizar a segurança a respeito da transmissão do imóvel. [6]

Isso não significa que estaria extinta a certidão de inteiro teor, que continuará a ser lavrada, não em atendimento a solicitações arbitrárias, mas em situações excepcionais como ordem judicial, pelo próprio titular de um direito ou situação jurídica inscrita ou por comprovação de legítimo interesse baseado em lei, como no caso do loteador, que deve, por força do art. 18, II da Lei 6766/79, submeter o projeto de loteamento ou desmembramento ao registro acompanhado da certidão vintenária, ou ainda do incorporador que, conforme art. 32, “c” da Lei 4591/64, somente pode negociar unidades autônomas de condomínio após ter arquivado no cartório competente de Registro de Imóveis o histórico de títulos de propriedade dos últimos 20 anos, acompanhado de certidão e dos respectivos registros.    Como o direito e a jurisprudência são dinâmicas, não parece ser adequado regramento pelo CNJ para estipular esse conteúdo mínimo. É necessário maior flexibilidade. Considerando que, com a adoção do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, há uma natural e sadia uniformização de práticas para maior eficiência do serviço, seria recomendável que o Operador Nacional de Registro criasse comissão permanente entre os oficiais de registro para formular diretrizes e receber consultas, de modo a que não haja discrepância em relação ao conteúdo de certidões lavradas pelo diferentes cartórios.


[1] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª ed. Brasília: UnB, 1995, p. 57.

[2] SERPA LOPES, Miguel Maria. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, vol. 1, p. 57.

[3] BÉVILAQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p. 62.

[4] “Where the context requires information to be made available based on interests supported by the publicity principle so as to facilitate legal certainty, then data protection legislation only requires this information to be provided with adequate safeguards. These safeguards require that no more information than necessary is provided and only to those warranted by the purpose for which the information was collected Advancing legal certainty by way of publicity cannot justify an open access regime. Hence, maintaining an open access regime is at odds with the data protection principles, and it is disproportional to the purpose it serves” . Beerle, A. Access to personal data in public land registers (balancing publicity of property rights with rights to privacy and data protection), Maastricht Law Series, Eleven International Publishing, 2018, pp. 385-38.

[5] A mesma solução foi encontrada pela Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali, que entende lícita a emissão de certidões e a publicação de proclamas, desde que se siga estritamente a forma legal, e no mínimo necessário para atendimento de sua função: “La legge n. 675/1996 non ha modificato né la normativa concernente la tenuta dei registri dello stato civile, né quella relativa alle anagrafi della popolazione, così come rispettivamente delineate dal r.d. n. 1238/1939, dal codice civile, dalla legge n. 1228/1954, dal d.P.R. n. 223/1989 e dalla legge n. 127/1997. Pertanto, ai sensi dell´art. 27, commi 2 e 3 della legge n. 675/1996, è lecito il rilascio a terzi, da parte del Comune, di certificazioni anagrafiche, purché risultino osservati i limiti stabiliti in materia dagli artt. 33, 34 e 35 del d.P.R. n. 223/1989”. Garante 22 luglio 1997, in Bollettino n. 1, pag. 43.

[6] Agradecemos ao registrador Rafael Ricardo Gruber pela indicação das situações mais simples ou mais complexas em relação à lavratura de certidões exemplos de imposição legal de certidão vintenária.

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