Caráter sui generis da publicidade registral

2. Publicidade Registral

2.1 Caráter sui generis da publicidade registral

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A publicidade como princípio de Administração Pública encontra assento na Constituição Federal de 1988 e possui duas acepções.

A primeira consiste na “propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes”[1] aos administrados, ou seja, na “transparência dos comportamentos administrativos”[2] e tem fundamento no dever de prestação de contas em todas as esferas e manifestações do Poder Público, considerando-se, como valor republicano, que “todo poder emana do povo” (CF88, art. 1º  §1º).

Na segunda acepção, publicidade é a “divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos”[3], consubstanciada no art. 37 da CF88 e incs. A publicidade, aqui, tem o sentido de publicação ou de difusão para chegar ao conhecimento do público ato destinado a regular ou gerar efeitos sobre os administrados, não propriamente como obrigação, mas como condição constitutiva de validade e eficácia dos atos administrativos perante a sociedade como um todo.

Como dever de transparência, a publicidade traz como reflexo o direito de acesso à informação, que pode ser obtido por meio de transparência passiva ou ativa dos órgãos e agentes públicos ou de todos aqueles que atuem no exercício de função pública. A transparência passiva reside na prestação de informações sobre suas atividades, mediante requisição pelo interessado (assim o direito fundamental a receber informações de interesse particular, coletivo ou geral- art. 5o, inc. XXXIII- e de obter certidões para defesa de direitos e esclarecimento de situações, art. 5o, inc. XXXIV, b). Trata-se de uma proibição de manter secreta a ação administrativa, a não ser em hipóteses excepcionais em que o interesse público exigir, como na investigação criminal ou para proteger o sigilo e a privacidade individual. Já a transparência ativa consiste em franquear informações ao público (CF 88, § 2º do art. 216), podendo significar a obrigação de publicar informações sobre comportamentos específicos dos órgãos e agentes públicos (art. 8o da Lei de Acesso à Informação- Lei 12.527/2011).

A Lei 6.015/1973 ou Lei de Registros Públicos-LRP estabelece já em seu art.1º a espécie de publicidade característica das Serventias, que determina a sua finalidade própria, qual seja, conferir autenticidade, segurança e eficácia de atos jurídicos. Fica claro, portanto, que a acepção de publicidade registral é a de produção de efeitos na esfera jurídica, sendo portanto de natureza constitutiva. Um dever de natureza obrigacional é aquele derivado de norma que impõe determinado comportamento, cujo descumprimento pode levar a uma sanção. Um dever constitutivo, por sua vez, é derivado de regra que define determinada prática institucional e cujo descumprimento tem por consequência a invalidade ou ineficácia de atos jurídicos.

A publicidade como transparência ativa é dada por um dever de natureza obrigacional, ao passo que a publicidade como condição de eficácia resulta de um dever constitutivo. Ainda que o oficial de registro possa estar sujeito a penalidades por omissão em seus deveres funcionais, trata-se de aspecto acessório, voltado para a boa organização e condução do sistema registral. A consequência imediata do descumprimento de seu dever funcional recai intrinsecamente sobre a constituição de validade e eficácia instabilizando relações jurídicas, fulminando a validade ou impedindo a produção de efeitos de atos jurídicos. 

Em ambas as acepções, como transparência e como condição de eficácia, a publicidade aplicada ao comportamento da Administração ou dos órgãos que compõem os Poderes Públicos tem o conteúdo de um dever de publicar no sentido de tornar público, i.e. levar ao conhecimento do público.[4] Isso porque, como bem nota Carlos Ari Sundfeld, falta à Administração uma vida interior que lhe atribua um interesse próprio, de modo que sua atuação é sempre externa, para a promoção do interesse público.[5]

Essa consideração de Sundfeld coloca a publicidade registral em posição sui generis.  A atividade é pública por consistir em função do Estado. É pública também no sentido de ser disponibilizada à generalidade dos cidadãos. E a publicidade de seus atos diz respeito à condição de eficácia, vale dizer conferir autenticidade, segurança e eficácia a relações jurídicas. Esse efeito da publicidade, porém, versa sobre relações de interesse particular, afeitos à vida privada.  

A atividade dos tribunais, em sua função judicial, também constitui e declara relações jurídicas particulares, de interesse privado, porém com duas distinções fundamentais em relação aos registros: uma quanto à forma da publicidade; a outra quanto ao agente que exerce a função pública.

Quanto à forma da publicidade, tem-se que, na atividade judicial, a publicidade consiste no dever de publicação dos atos dos magistrados, no sentido de divulgação ao público em geral.[6] Esse dever de publicidade decorre do comando constitucional da publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX e art. 93, IX da CF88). Na interpretação ampla conferida pelo STF, [7]  essa publicidade abrange todas as ocorrências processuais constantes nos autos, cuja consulta, é livre ao público, com exceção dos casos sob sigilo para proteção da intimidade, sendo, hoje, na maioria dos tribunais, inclusive disponibilizada em arquivos eletrônicos acessíveis online. Somente os atos decisórios, porém, são objeto de divulgação pelos canais oficiais de publicação.  

Já na a atividade extrajudicial, registral, não há propriamente publicação, mas um dever de tornar cognoscível a qualquer interessado a disposição de interesse privado, por meio da emissão de certidões, nas quais os oficiais de registro examinam os documentos e comprovam ou autenticam e existência de determinadas relações jurídicas privadas. Não há uma consulta livre aos livros ou dados de registro, tal como ocorre no judiciário, onde os autos processuais não sigilosos ficam disponíveis para acesso ao público, inclusive por meio eletrônico.

Na distinção precisa de Pugliatti, a publicação, presente na atividade judicial, produz uma condição de difusão fática, da qual decorre o resultado de alcançar o conhecimento de um número indeterminado de pessoas. Já o efeito produzido com os mecanismos organizados pelas Serventias para emissão de certidões, o efeito fático produzido é a “possibilidade permanente e ao máximo generalizada de se procurar o conhecimento da relação jurídica”.

Quanto ao agente, na atividade judicial tem-se agentes ou órgãos públicos no exercício das funções do Estado. Já na atividade extrajudicial dos registros, essa função pública é desempenhada por delegação ao particular, profissional de Direito, que é investido na função de oficial de registro. 

É certo que paira debate doutrinário acerca da figura jurídica do oficial de registro, no seu papel de delegatário de função pública. O debate liga-se à responsabilização por danos causados pela atividade registral. Aqueles que entendem ser o oficial de registro espécie de agente público,[8] defendem que a responsabilidade recai sobre o Poder Público (com base no art. 37, §6º da CF 88). Aqueles que enxergam na atividade registral apenas o exercício de uma função pública em caráter e regime privados, defendem a responsabilidade civil do oficial de registro, na estrita leitura do art. 236, caput da CF88 e do art. 22 da Lei 8935/22).[9] O STJ[10] chegou a referendar a posição de Hely Lopes Meirelles[11], segundo a qual a responsabilidade originária é do oficial de registro ou notário, respondendo o Estado de modo subsidiário. Mas, recentemente, o STF decidiu pela responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que causarem danos a terceiros no exercício de suas funções.[12] 

Porém, a equiparação para fins de responsabilização do Estado, obviamente, não retira o caráter privado dos serviços registrais, nem transforma os oficiais de registro em funcionários ou servidores públicos.[13] Sua atividade continua organizada e exercida em caráter privado,  remunerada pelos particulares e não pelos cofres públicos, razão pela qual, diferentemente do que ocorre com o Poder Judiciário, não se sujeita aos deveres de transparência ativa decorrentes da  Lei de Acesso à informação (art. 1º). A fiscalização da atividade compete apenas ao Poder Judiciário, mas o oficial goza de independência jurídica no seu mister (art. 28 da Lei 8.935/94).

 Isso porque, por força do art. 236 da CF88, não pode ser exercido pelo Poder Público, nem direta, nem indiretamente, mas confiada ao profissional de Direito, com outorga pelo Poder Judiciário, por meio de concurso público de provas e títulos (CF 88 art. 236, par. 2º e art. 2º da LRP).[14] Com isso, a CF88 marca a natureza jurídica da atividade registral, distinguindo-a da  atividade administrativa e mantendo-a independente, livre de condicionamentos de ordem política, conforme preconizado pelo art. 28 da Lei 8.935/94.  Nota importante, pois a função pública exercida pelos oficiais de registro, ao processar dados e interesses de natureza privada, protege tais relações inclusive da ação Estatal, donde sobressai sua natureza republicana e relevância para afirmação da soberania do cidadão.

Veremos a seguir que esse aspecto sui generis das Serventias- com sua função pública, mas constitutiva da eficácia de relações privadas e confiada a particular, inclusive contra a atuação Estado- tem implicações relevantes sobre os deveres relacionados à publicidade registral.


[1] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 8a. ed., 1981, p. 76

[2] Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 30a ed., 2013, p. 117.

[3] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 38a. ed., 2012, p. 93.

[4] Sobre a distinção entre deveres obrigacionais ou em sentido estrito e deveres constitutivos, ver von Wright, G.H. Norm and Action: a Logical Inquiry, Routledge, 1971, Cap. I. 

[5] Sundfeld, Carlos Ari. Princípio da Publicidade Administrativa (Direito de Certidão, Vista e Intimação), in Revista de Direito Administrativo 199:97-110, jan./mar. 1995); no mesmo sentido Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, Atlas, 2002, p. 75.

[6] Jurisprudência STF e Lei 2019 acesso aos documentos

[7] Voto Min. Luiz Fux na ADI 4414/AL

[8] Ceneviva, W. op. cit., p. 53 e ss. 

[9] Afonso da Silva, J. op. cit. p. 898 e ss.

[10] Resp 1.163.652-PE, Rel. Min. Herman Benjamin, 01.06.2010.

[11] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 29.ed. Malheiros, 2004, p. 222.

[12] STF, RE 842.846, Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux, j. em: 27 de fevereiro de 2019.

[13] ADI 2602, Relator Ministro Marco Aurélio.

[14] Exceção das Serventias extrajudiciais oficializadas antes da CF88.

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