Atos constitutivos pelo oficial de registro

2.3.1 Atos constitutivos pelo oficial de registro

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Os efeitos constitutivos de direitos, em particular do direito de propriedade, ou das limitações e ônus sobre a propriedade, instituídos pelos atos dos oficiais de registro, tem alcance erga omnes em função da fé pública, da qual o oficial está investido. Essa fé pública não se refere propriamente a um estado mental subjetivo, que possa ser faticamente percebido,  de crença ou confiança coletiva dos cidadãos no funcionamento do sistema ou do processamento dos dados pelos registradores, muito menos de conhecimento sobre o conteúdo dos registros. A fé pública tem um sentido estritamente normativo, de presunção validamente gerada por meio de atos dotados de autoridade do oficial de registro, na qual é investido com a outorga pelo Poder Público.

Vale um passo atrás para entender o significado de fé pública, onde reside a publicidade registral, e qual o produto desse ato institucionalizado do oficial de registro.

Os Registros Públicos são encarregados da configuração da realidade jurídica- o “mundo do dever-ser”, na expressão Kelsen ou o “mundo jurídico (Rechtswelt) na expressão de von Tur– que é constituída por um complexo de posições e relações jurídicas derivadas de regras. Tais posições, relações jurídicas e direitos possuem uma realidade objetiva, muito embora não se reduzam a qualquer fenômeno físico. Assim, ao afirmarmos que alguém é proprietário, não nos referimos ao domínio de fato sobre um bem, mas a um conjunto de vínculos obrigacionais. De acordo com Searle,[1] essa realidade decorre de uma crença coletiva, fruto de uma prática social fundada em regras constitutivas vinculantes, que estipulam o que conta como existente no contexto de uma instituição: são os chamados “fatos institucionais”. Esses fatos, embora não sejam uma realidade física, são objetivos,  pois independem de valorações subjetivas. E são objetivos justamente por serem criados por atos dotados de autoridade que instanciam aquelas regras constitutivas objetivamente válidas. Esses atos de oficiais investidos de poder são chamados de “atos performativos”. 

Por exemplo, o registro de casamento é um ato performativo que constitui o fato institucional, segundo o qual determinada pessoa muda de status civil, com o efeito, dentre outros, de restringir sua capacidade jurídica de disposição de bens.  O registro de nascimento cria a representação de determinado indivíduo como pessoa natural, que passa a ser reconhecido como sujeito de direito. Da mesma forma, a inscrição do título de aquisição na matrícula do imóvel não altera qualquer aspecto físico do bem, apenas a posição  jurídica daquele referido na inscrição, que passa, então, a ser seu legítimo proprietário.

Desse modo, podemos ver a atividade registral como um conjunto de atos performativos, investidos de autoridade, que criam fatos institucionais e, assim, inscrevem novos dados na realidade jurídica. Esse é seu papel institucional, ao lado de sua responsabilidade por guardar dados jurídicos, materializados em seu suporte físico ou eletrônico. Não é função do registrador divulgar as informações contidas nos dados sob seus cuidados, muito pelo contrário. Sua função pública consiste em emitir juízos jurídicos em sua maioria sobre relações não controvertidas, a partir da verificação de elementos fáticos da análise de dados sob sua curadoria, juízos estes que tem por efeito inscrever novos dados na realidade jurídica, quais sejam, a constituição de direitos ou de meios de prova. Por meio dessa função pública delegada pelo Estado, propicia segurança, autenticidade e eficácia às relações jurídicas.

Vale dizer, não é a divulgação fática ou o fato de terceiros tomarem conhecimento de determinado fato ou relação com determinado bem que permite o reconhecimento de efeitos na esfera jurídica. É o ato institucionalizado e formal de registro que gera o efeito normativo de publicidade, tornando o ato jurídico imediatamente oponível a terceiros de boa-fé.

Esse efeito jurídico de força probante da formalidade registral é bem-apanhado por Serpa Lopes, quando destaca não ser essencial a publicidade de fato para a inscrição, mas que, ao contrário, a “inscrição é simples forma de publicidade”. Completa a reflexão destacando que, com o registro “é a sociedade juridicamente organizada que, por intermédio do funcionário competente, dá publicidade”.[2]  A alegoria de Serpa Lopes, que vê o oficial de registro como longa manus da própria sociedade organizada, ilumina tanto o caráter republicano do Registro, quanto a natureza estritamente institucional e jurídica da publicidade registral.


[1] Searle, J. R. The Construction of Social Reality, Free Press, 1995.

[2] Serpa Lopes, M. M. Tratado dos Registros Públicos, v.1, 1938, pp. 44-45.

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